Lytton - parte da introdução

Naquele tempo, procureisaber o seu parecer a respeito de uma obra de imaginação, em que eu me propunha pintar os efeitos do entusiasmo nas diversas modificações do caráter. Ele escutou, com sua paciência habitual, o argumento da minha obra, que era bastantè vulgar e prosaica, e dirigindo-se, depois com ar pensativo, à sua coleção de livros, tirou um volume antigo, do qual me leu, primeiro em grego, e em seguida em inglês alguns trechos do teor seguinte:--Platão fala aquide quatro classes de mania", palavra que, a meu entender, denota entusiasmo, a i nspiração dos deuses:Primeira, a musical; segunda, a teléstica ou mística; terceira, a profética; a quarta, a pertencente ao amor".O autor citado pelo meu amigo, depois de sustentar que na alma há algo que está acima do intelecto, e depois de afirmar que em nossa natureza existem di stintas energias, - uma das quais nos permite descobrir e abraçar, por assim dizer, as ciências e os teoremas com uma rapidez quase intuitiva, ao passo que, mediante outras, se executam as sublimes obras de arte, tais como as estátuas de Fidias, - veio dizer que --o entusiasmo, na verdadeira acepção da palavra aparece quando aquela parte da alma, que está por cima do intelecto, se eleva, exaltada até aos deuses, de onde provém a sua i nspiração".Prosseguindo em seus comentários sobre Platão, o autor observa que --uma destas manias" (isto é, uma das classes de entusiasmo) especialmente a que pertence ao amor, pode fazer remontar a alma à sua divindade e bem-aventurança primitivas; porém que existe uma intima união entre elas todas, e que a ordem progressiva, pela qual a alma sobe, é esta:primeiro, o entusiasmo musical; depois, o entusiasmo telético ou místico; terceiro, o profético; e, finalmente, o entusiasmo do amor".Escutava eu estas intrincadas sublimidades, com a cabeça aturdida e com atenção relutante, quando o meu mentor fechou o livro, dizendo-me com complacência:- Ali tem você o mote para o seu livro, a tese para o seu tema.- Davus sum, non OEdipus, - respondi, meneando a cabeça e com ar descontente. - Tudo pode ser muito belo, mas, perdoe- me o Céu, - eu não compreendinem uma só palavra de tudo o que acaba de dizer-me. Os mistérios dos Rosacruzes e as fraternidades de que fala, não são mais do que brinquedos de crianças, em comparação com a geringonça dos Platônicos.- E, contudo, enquanto o senhor não tiver compreendido bem esta passagem, não poderá entender as mais elevadas teorias dos Rosacruzes ou das fraternidades ainda mais nobres, das quais fala com tanta leviandade.- Oh! Se assim é, então renuncio a toda esperança de consegui-lo. Porém, uma vez que está tão versado nesta classe de matérias, porque não adota o senhor mesmo, aquele mote para um de seus próprios livros?- Mas, se eu já tivesse escrito um livro com aquela tese encarregar-se-ia o meu amigo de prepará-lo para o público?- Com o maior gosto, respondieu, infelizmente, com bastante imprudência.- Pois eu o tomo pela palavra, - replicou o ancião, - e quando eu tiver deixado de existir nesta terra, receberá os manuscritos. Do que diz a respeito do gosto, que hoje predomina na literatura, deduzo que não posso lisonjear-lhe com a esperança de que venha a obter grande proveito em sua empresa; e advirto-lhe de antemão que achará bastante laboriosa a tarefa.- É a sua obra um romance?- É romance, e não é. É uma realidade para os que são capazes de compreendê-la; e uma extravagância para os que não se acham neste caso.Por fim, chegaram às minhas mãos os manuscritos, acompanhados de uma breve carta do meu i nolvidável amigo, na qual me recordava da minha imprudente promessa.Com o coração oprimido, e com febril impaciência, abri o embrulho, avivando a luz da lâmpada. Julguem qual foio desalento que se apoderou de mim, quando vique toda a obra estava escrita em caracteres que me eram desconhecidos! Apresento aquiao leitor uma amostra deles:e assim por diante, as novecentas e quarenta páginas de grande formato! Apenas podia dar crédito aos meus próprios olhos; comeceia pensar que a lâmpada estava luzindo com um azul singular; e assaltaram à minha desconcertada imaginação vários receios a respeito da profanada índole dos caracteres que eu, sem dar-me conta disso, havia aberto, contribuindo para isto as estranhas i nsinuações e a mística linguagem do ancião. Com efeito, para não dizer outra coisa pior, tudo aquilo me parecia muito misterioso, impossível!Já estava eu querendo meter, precipitadamente, esses papéis num canto da minha escrivaninha, com a pia intenção de não me ocupar mais deles, quando a mi nha vista, de improviso, fixou-se num livro, primorosamente encadernado em marroquim. Com grande precaução, abrieste livro, ignorando o que podia sair dali, e - com uma alegria que é impossível descrever - vique ele continha uma chave ou um dicionário para decifrar aqueles hieróglifos. Para não fatigar o leitor com relação às minúcias do meu trabalho, me contentareiem dizer que por fim, chegueia julgar-me capaz de interpretar aqueles caracteres, e pus mãos à obra, com verdadeiro afinco. A tarefa não era, porém, fácil; e passaram-se dois anos antes que eu fizesse um adiantamento notável. Então, desejando experimentar o gasto do público, conseguipublicar alguns capítulos desconexos num periódico, em que 3 tinha a honra de colaborar, havia alguns meses.Estes capítulos pareceram excitar a curiosidade do públi co muito mais do que eu havia presumido; dediquei-me, pois, com mais ardor do que nunca, à minha laboriosa tarefa. Porém, então me sobreveio um novo contratempo:ao passo que eu ia adi antando no meu trabalho, acheique o autor ti nha feita dois originais de sua obra, sendo um deles mais esmerado e mais minucioso do que o outro; infelizmente, eu tinha topado com o original defei tuoso (*), e, assim, tive que reformar o meu trabalho, desde o princípio até o fim, e traduzir de novo os capítulos que já escrevera. Posso dizer, pois, que, excetuando os intervalos que eu dedicava às ocupações mais peremptórias, a minha desditosa promessa me custou alguns anos de trabalhos e fadigas, antes de poder vê-la devidamente cumprida. A tarefa era tanto mais difícil, porque o original estava escrito numa espécie de prosa rítmica, como se o autor houvesse pretendido que a sua obra fosse considerada, em certo modo, como uma concepção ou um debuxo poético. Não foipossível dar uma tradução que conservasse tal forma, e onde tenteifazê-lo, é, freqüentemente, necessário pedir a indulgência do leitor. O respeito natural com que, ordinariamente, tenho aceitado os capri chos do velho cavalheiro, cuja Musa era de um caráter bastante equívoco, deve ser a minha única desculpa onde quer que a linguagem, sem entrar plenamente no campo da poesia, apareça com algumas flores emprestadas, um tanto impróprio da prosa.Em honra da verdade, heide confessar também que, apesar de todos os esforços que fiz, não tenho a certeza absoluta de ter dado sempre a verdadeira significação a cada um dos caracteres hieroglíficos do manuscrito; e acrescentareique, em algumas passagens, tenho deixado em branco certos pontos da narração, e que houve ocasiões em que, encontrando um hieróglifo novo, de que não possuía a chave, vi-me obrigado a recorrer a interpolações de mi nha própria invenção, que, sem dúvida, se distinguem do resto, mas que com prazer reconheço, não estão em desacordo com o plano geral da obra. Esta confissão que acabo - de fazer, leva-me a formular a seguinte sentença, com a qual vou terminar:Se neste livro, o caro leitor, encontrar algo que seja de seu gosto, sabe que é, com toda a certeza, produzido por mim; porém, onde achar algo que o desagrade, dirija a sua reprovação ao endereço do velho cavalheiro, o autor dos hieróglifos manuscritos!Londres, Janeiro de 1842.

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